Não há dúvida que quando se
discute a questão ambiental no Brasil, predomina no debate a situação da
floresta amazônica. Em seguida se fazem presentes os ecossistemas encontrados no
cerrado, na caatinga, no pantanal, nos pampas entre outros. No entanto, os ecossistemas costeiros do
Brasil - repletos de biodiversidade única - também enfrentam ameaças
significativas, particularmente da expansão imobiliária. À medida que os
projetos de desenvolvimento avançam ao longo da costa, inúmeros animais e aves
caminham para situações cada vez mais críticas em termos de sobrevivência.
O litoral brasileiro, com mais de
7.000 quilômetros, abriga diversos ecossistemas, como manguezais, restingas e florestas
da Mata Atlântica. Esses ecossistemas abrigam uma variedade de espécies, desde a
recém-descoberta preguiça-de-coleira-do-sudeste (Bradypus crinitus)[1]
encontrada no ecossistema de restinga no norte do estado do Rio de Janeiro e o
boto-de-Lahille (Tursiops gephyreus)[2]
ameaçado pela poluição das águas costeiras e estuarinas, até diversas espécies
de aves como o saí-das-retingas (Tangara peruviana)[3]
espécie vulnerável característica da floresta atlântica litorânea e que vem
perdendo habitat devido ao avanço dos condomínios de luxo no litoral que vai de
São Paulo a Santa Catarina.
Uma das principais questões
relacionadas à expansão imobiliária é a perda de habitat. Os litorais brasileiros
se tornaram atrativos para o turismo e o desenvolvimento imobiliário.
Condomínios de luxo, resorts à beira-mar e crescimento urbano em expansão estão
engolindo habitats antes não perturbados.
Tome-se, por exemplo, o caso das
borboletas. A contínua fragmentação da Mata Atlântica costeira devido à
expansão imobiliária tem levado ao isolamento e à beira da extinção várias
espécies de borboleta, como o rabo-de-andorinha-fluminense (Parides ascanius)[4]
que vive em habitats de restinga no estado do Rio de Janeiro. No litoral
paulista recentemente foi redescoberta, após cem anos sem ser avistada, a
borboleta Adelpha herbita que era considerada extinta[5].
Esse isolamento torna-as mais vulneráveis, dificultando sua sobrevivência a
longo prazo.
Da mesma forma, a
tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata)[6],
ameaçada de extinção, que depende das praias do Brasil para nidificar, enfrenta
interrupções em empreendimentos à beira-mar. A iluminação artificial desses
estabelecimentos muitas vezes desorienta os filhotes, afastando-os do mar e
aumentando suas chances de predação e mortalidade.
As espécies de aves também são
severamente impactadas. A
maria-da-restinga (Phylloscartes kronei)[7]
descrita recentemente e ameaçada de extinção, enfrenta perda de habitat devido
à expansão urbana em curso no litoral das regiões sul e sudeste. A situação do
formigueiro-do-litoral (Formicivora littoralis) é de extrema gravidade, sendo a
única ave exclusiva de restinga no Brasil[8].
É considerada uma das aves que corre maior risco de extinção no mundo. Vive
somente numa pequena área do Rio de Janeiro, que está sendo destruída para a
construção de condomínios fechados entre outras atividades de especulação
imobiliária na região do Lagos. Há muitas outras espécies de aves que sofrem
com esse tipo de expansão urbana no litoral com suas áreas de nidificação e
alimentação diminuindo rapidamente, essas aves são forçadas a habitats menores
e fragmentados, levando a declínios populacionais.
Os empreendimentos imobiliários
costeiros também podem agravar os níveis de poluição. O escoamento da
construção, o esgoto não tratado e os resíduos sólidos dos centros urbanos em
expansão muitas vezes encontram seu caminho para os habitats costeiros,
afetando a fauna marinha. Por exemplo, é o caso do peixe-boi marinho (Trichecus
manatus), mamífero aquático que vive nas áreas costeiras e estuários, e que
está sendo ameaçado pela degradação de seu habitat. O peixe-boi é o mamífero
marinho mais ameaçado de extinção no país afetado, principalmente, pela
destruição dos manguezais, seu principal refúgio[9].
A alteração de paisagens para o
desenvolvimento imobiliário muitas vezes perturba o delicado equilíbrio
ecológico dessas áreas costeiras. Mudanças na topografia, por exemplo, podem perturbar
os habitats das espécies que vivem nessas zonas. A topografia de uma área de
praia pode ter impactos significativos na biodiversidade que essa área suporta.
A topografia pode afetar fatores como a exposição à luz solar, a circulação de
água e a disponibilidade de habitats, todos os quais podem influenciar a
diversidade e abundância de espécies em uma área. Por exemplo, as dunas são
ambientes bem característicos, que sofrem com a retirada de areia para
construções e possuem altas taxas de visitantes turistas, o que pode afetar
esse sistema ecológico, pois as dunas e a vegetação associada fornecem habitats
para várias espécies de plantas e animais que se adaptaram à vida nessas
condições extremas. Algumas espécies de plantas têm raízes profundas que podem
buscar água abaixo da superfície da areia, enquanto outras têm folhas cerosas
que reduzem a perda de água. Da mesma forma, alguns animais desenvolveram adaptações
para sobreviver nesse ambiente quente e seco, como a lagartixa-das-dunas
(Liolaemus occipitalis)[10],
possui unhas pontiagudas em seus dedos que criam aderência e tração permitindo
ao réptil, movimentar-se com grande rapidez e velocidade no terreno arenoso, e
ainda escavar na areia para escapar do calor do dia. Mudanças nessa topografia
devido a atividades humanas, pode ter impactos significativos na
biodiversidade. O mesmo pode ocorrer com recifes de corais, manguezais,
restingas e outros ecossistemas costeiros que são refúgios insubstituíveis de
biodiversidade. Reconhecer e valorizar a importância ecológica destes habitats
é o primeiro passo para a sua conservação.
Além disso, a poluição sonora da
construção civil e das atividades humanas subsequentes perturba o comportamento
natural de muitas espécies. As aves, em particular, são suscetíveis a isso,
pois interfere em sua comunicação, reprodução e comportamentos de evitação de
predação.
Por fim, o desenvolvimento
imobiliário muitas vezes abre caminho para a introdução de espécies invasoras.
Essas espécies não nativas podem competir com a vida selvagem local por
recursos e alterar drasticamente os habitats, representando uma ameaça
adicional à fauna nativa já pressionada.
Embora o Brasil tenha estabelecido
legislação de proteção e áreas protegidas para salvaguardar sua rica
biodiversidade, a fiscalização continua sendo um desafio significativo. A
corrupção generalizada, a legislação fraca e a falta de recursos permitem
frequentemente a violação contínua destes habitats costeiros.
A abordagem destas questões exige
uma aproximação equilibrada e sustentável do desenvolvimento. Priorizar o
planejamento urbano verde, fortalecer a legislação ambiental e incentivar o
envolvimento da comunidade na conservação pode ajudar a aliviar essas pressões.
Parcerias e financiamentos internacionais poderiam ajudar a aplicar essas
medidas de proteção e fornecer os recursos necessários para uma conservação
eficaz.
A promoção do turismo sustentável
é outra solução viável. Ao destacar a biodiversidade única e as belezas
naturais dessas áreas costeiras, o Brasil pode estimular sua economia e, ao
mesmo tempo, incentivar a preservação de suas paisagens naturais. O
investimento em ecoturismo pode garantir que o desenvolvimento prossiga sem a
destruição de habitats, oferecendo um incentivo econômico para a conservação.
O setor privado também desempenha
um papel importante. Incentivar o comportamento ambientalmente responsável
entre as incorporadoras pode ajudar a mitigar os impactos da construção. Isso
pode incluir medidas como a realização de avaliações de impacto ambiental
completas, a implementação de recursos de design favoráveis à vida selvagem e a
criação de zonas de amortecimento natural ao redor dos locais de
desenvolvimento.
A conscientização e a educação do
público são fundamentais para que qualquer esforço de conservação seja
bem-sucedido. Uma maior conscientização sobre a importância desses ecossistemas
e as ameaças que eles enfrentam pode levar as comunidades locais a se engajarem
ativamente em sua proteção. Isso pode envolver denunciar atividades ilegais,
participar de limpezas de praias ou apoiar iniciativas locais de conservação.
A cooperação internacional e o
financiamento também são necessários. Muitas das espécies afetadas pelo
desenvolvimento costeiro são motivo de preocupação para a conservação global. Em
especial, é o caso das aves migratórias que frequentam várias áreas do litoral.
Por exemplo, no norte do Rio Grande do Sul, o litoral é formado por um mosaico
de ecossistemas – margem de lagoas, dunas, banhados e marismas -, que serve de
abrigo para milhares de espécies aquáticas e terrestres, e que são sítios de
alimentação e reprodução de aves residentes e migratórias. É a área que mais
cresce no estado em termos de urbanização, trazendo inúmeros problemas
ambientais. O apoio de organizações internacionais de conservação pode ajudar a
reforçar os esforços do Brasil para proteger sua ameaçada biodiversidade
costeira.
Além disso, a adoção de novas tecnologias,
como sensoriamento remoto e sistemas de informações geográficas (SIG), pode
auxiliar no melhor planejamento e monitoramento da expansão urbana. Essas
ferramentas podem ajudar a identificar áreas ecologicamente importantes e
monitorar as mudanças no uso da terra ao longo do tempo, permitindo uma tomada
de decisão mais informada.
Enquanto o Brasil continua a
lidar com os efeitos da rápida expansão imobiliária, a importância de seus
ecossistemas costeiros não deve ser negligenciada. Esses ecossistemas não são
apenas o lar de uma deslumbrante variedade de espécies, mas também são
essenciais para o bem-estar humano, oferecendo serviços como proteção costeira,
sequestro de carbono e oportunidades de turismo.
É um desafio colossal harmonizar desenvolvimento
e conservação. Ainda assim, com esforços conjuntos, vontade política,
participação pública e soluções inovadoras, o Brasil pode encontrar um
equilíbrio. Ao fazê-lo, não só salvaguardará a sua insubstituível
biodiversidade costeira, mas também garantirá um futuro sustentável e
resiliente para as suas populações e para a vida selvagem.
Como citar este artigo:
DIAS, R. Invasão de concreto: expansão imobiliária e os problemas enfrentados
pela biodiversidade na costa brasileira. Poliseres. Campinas/SP, p.1-3,
junho 2023.
Referências
[1] A
surpreendente revelação da preguiça-de-coleira-do-sudeste e os desafios para
sua preservação na Mata Atlântica - https://www.poliseres.com.br/2023/05/a-surpreendente-revelacao-da-preguica.html
[2] Boto-de-Lahille,
a espécie de golfinho pouco conhecido que habita o Atlântico Sul - https://www.poliseres.com.br/2023/03/boto-de-lahille-especie-de-golfinho.html
[3] A
luta pela sobrevivência da saíra-sapucaia em meio à expansão imobiliária no
litoral brasileiro - https://www.poliseres.com.br/2023/04/a-luta-pela-sobrevivencia-da-saira.html
[4] Parides
ascanius: a borboleta praiana - https://oeco.org.br/noticias/27930-parides-ascanius-a-borboleta-praiana/
[5] Pela
primeira vez em 100 anos, espécie de borboleta é vista em SP - https://www.fatosdesconhecidos.com.br/pela-primeira-vez-em-100-anos-especie-de-borboleta-e-vista-em-sp/
[6] Iluminação
artificial e orientação dos filhotes de Eretmochelys imbricata - https://www.sustenere.co/index.php/rica/article/view/CBPC2179-6858.2020.004.0008
[7] Território
e biologia reprodutiva da maria-da-restinga - https://www.iat.pr.gov.br/sites/agua-terra/arquivos_restritos/files/documento/2020-11/projeto_334_2011.pdf
[8] Formigueiro-do-litoral.
O passarinho que precisa da restinga fluminense - https://faunanews.com.br/2021/04/14/formigueiro-do-litoral-o-passarinho-que-precisa-da-restinga-fluminense/
[9] Peixe-boi-marinho
- https://ambientes.ambientebrasil.com.br/fauna/mamiferos/peixe-boi-marinho_trichechus_manatus.html
[10] Lagartixa-das-dunas
- https://www.ufrgs.br/faunadigitalrs/liolaemus-occipitalis/