Boto-de-Lahille, a espécie de golfinho pouco conhecido que habita o Atlântico Sul


O Boto-de-Lahille (Tursiops gephyreus), também conhecido como boto-da-tainha ou boto-da-barra, é uma espécie de golfinho que habita as águas costeiras e estuarinas do sul do Brasil, Argentina e Uruguai. Este cetáceo, por viver próximo às praias é frequentemente avistado por moradores e turistas.  

Botos-de-Lahille são sociáveis, curiosos e inteligentes e interagem com facilidade com os humanos

Adultos da espécie podem medir até 4 metros de comprimento e pesar entre 250 e 450 kg. Possuem corpo de aspecto robusto e coloração predominantemente cinza escuro que vai clareando até o ventre. A nadadeira dorsal é triangular, com uma base larga e posicionada no meio do corpo. As nadadeiras peitorais também são largas na base e tem a ponta arredondada.

Os botos-de-Lahille são animais sociais, geralmente encontrados em grupos de 2 a 10 indivíduos, embora grupos maiores possam ser observados ocasionalmente. Eles são conhecidos por sua curiosidade e inteligência, muitas vezes interagindo com embarcações e exibindo comportamentos acrobáticos, como saltos e giros.

A espécie é encontrada especialmente nas áreas de desembocadura de rios e estuários, onde se alimenta de peixes, moluscos e crustáceos. Eles geralmente não se aventuram em alto mar, caracterizando-se mais como animais costeiros e não oceânicos.

Pesca colaborativa entre botos-de-Lahille e humanos, mostra a possibilidade de convivência com animais selvagens

O Boto-de-Lahille recebe o apelido de "boto-da-tainha" devido à sua relação com a pesca da tainha na região sul do Brasil. Durante a temporada de pesca da tainha, que ocorre entre os meses de maio e julho, os cardumes dessa espécie de peixe migram em direção ao sul, passando pela costa brasileira. Nesse período, os botos-de-Lahille são frequentemente avistados próximos à costa, pois também se alimentam de tainhas, aproveitando a abundância de alimento disponível.

Há mais de 140 anos as pessoas cooperam com os golfinhos selvagens para capturar tainhas nessa região. Esses pescadores artesanais têm operações de pequena escala, envolvendo famílias que realizam a prática há gerações.

Os pescadores entram na água do mar até a cintura perto das praias, esperando pacientemente que os golfinhos apareçam e indiquem onde estão as tainhas. A indicação ocorre quando os golfinhos dão voltas em forma de arco, saltando para fora da água. Nesse local os pescadores lançam suas redes. Os golfinhos então comem as tainhas que escapam das redes. De acordo com um estudo publicado em janeiro deste ano na revista Proceedings of the National Academy of Sciences  os golfinhos que participam desse ritual têm chance 13% maior de sobrevivência do que os golfinhos que não o fazem.

Pesca colaborativa entre botos e humanos é positiva para as duas espécies

Os golfinhos que participam dessa colaboração entre espécies têm maior probabilidade de ter vidas mais longas, por que não enfrentam equipamentos de pesca perigosos, onde poderiam ser capturados acidentalmente por redes de arrasto, na pesca comercial, que costumam afogar golfinhos devido ao enredamento nas redes de pesca.

A relação entre os botos-da-tainha e os pescadores da região sul do Brasil é interessante e única. Os pescadores observam o comportamento dos botos para identificar a presença de cardumes de tainha e aumentar a eficiência da pesca. Os botos, por sua vez, podem se beneficiar da pesca humana, já que as redes de pesca facilitam a captura das tainhas.

Essa relação de cooperação mútua é conhecida como "pesca colaborativa" e é um fenômeno raro entre seres humanos e animais selvagens. A interação entre os pescadores e os botos-da-tainha tem sido passada de geração para geração e é uma parte importante da cultura e tradição das comunidades pesqueiras da região sul do Brasil.

Tradição de pesca cooperativa entre humanos e golfinhos-de-Lahille ocorre em vários locais ao longo da costa sul do Brasil

Além da região de Laguna, em Santa Catarina, a pesca cooperativa entre humanos e golfinhos-de-Lahille ocorre no canal do estuário do rio Tramandaí (Tramandaí/Imbé) onde os botos cooperam frequentemente com os pescadores artesanais de tarrafa para capturar tainhas. No estuário do rio Mampituba (Torres) a pesca cooperativa também ocorre ocasionalmente.

No entanto, essa tradição poderá ser extinta em breve devido ao declínio das populações de tainhas por causa das mudanças climáticas e da pesca comercial abusiva. É uma tradição rara que envolve humanos e animais selvagens que se beneficiam igualmente da cooperação.

Os humanos também são responsáveis pelas principais ameaças à existência dos botos

Embora essa relação seja benéfica, não se deve esquecer que os botos também enfrentam ameaças relacionadas à atividade humana, como a poluição, a degradação do habitat, o aumento de tráfego marítimo e a pesca acidental. A poluição das águas costeiras e estuarinas, principalmente devido ao descarte inadequado de resíduos sólidos e líquidos, afeta diretamente a qualidade do habitat e a disponibilidade de alimentos para os botos. O aumento do tráfego marítimo resulta em maior risco de colisões com embarcações, o que pode causar ferimentos graves ou mesmo a morte dos animais. Portanto, é fundamental que sejam tomadas medidas de conservação para proteger os botos-da-tainha e garantir a continuidade dessa relação única entre humanos e animais.

No mês de junho de 2022, o boto-de-Lahille entrou oficialmente na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, Portaria MMA Nº 148, de 7 de junho de 2022, sendo classificado como Em Perigo de extinção (EN), o que significa que a espécie está enfrentando um risco muito alto de extinção na natureza. A justificativa foi a distribuição restrita e tão próxima às regiões costeiras, junto ao pequeno tamanho populacional estimado para a espécie (600 indivíduos, sendo apenas 360 maduros) e uma tendência populacional decrescente.

Devido a uma série de ameaças, entre as quais, capturas incidentais em redes de pesca, a poluição (química, residual e sonora), o esgotamento de presas e a degradação e a perda ambiental, o boto-de-lahille está em declínio em partes de sua área de distribuição colocando em risco sua sobrevivência. Sua proximidade com a costa também faz com que enfrentem os impactos da vida urbana. As populações mais conhecidas dos botos-de-Lahille são residentes em estuários e lagoas costeiras muito próximas de cidades que crescem rapidamente como Rio Grande, Tramandaí e Imbé (no Rio Grande do Sul) e Laguna (em Santa Catarina).

Número de indivíduos nas subpopulações do boto-de-Lahille são muito baixos

Poucas populações dessa subespécie são conhecidas - de 5 a 7 subpopulações (ou unidades populacionais), todas ocorrendo entre o sul do Brasil, Uruguai e Argentina. Algumas subpopulações mais conhecidas dos botos-de-lahille são encontradas em: Lagoa dos Patos (Rio Grande) com 90 indivíduos; estuário de Laguna (SC) com 60 indivíduos; na barra do rio Tramandaí (Tramandaí/Imbé) são somente 13 indivíduos.

A pesca predatória de tainhas, que ocorre com a retirada de um volume maior de tainhas que a população desse peixe pode suportar, é uma das principais ações humanas que produzem efeitos adversos sobre o comportamento e a vida dos botos-da-tainha. Mas outro grave problema é o enredamento acidental, ou seja, animais que são capturados acidentalmente, mesmo não sendo o alvo da pescaria. A população de botos-de-Lahille pode ser ameaçada dependendo do grau de intensidade desses eventos.

Captura acidental de botos que caem em redes atingiu um nível insustentável colocando em risco a existência do golfinho

Há uma estimativa de que dois botos, em média, morrem em decorrência de captura acidental por ano na região da Laguna, em Santa Catarina. É considerado um número significativo para uma fonte única de mortalidade, pois é uma subpopulação bem pequena para a espécie. Pesquisa publicada em 2021 na revista Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems revelou que o nível atual de captura acidental é insustentável. A captura acidental precisa ser eliminada para maximizar a probabilidade de persistência a longo prazo desta população de golfinhos. Ainda, a persistência dessa população pode ser ameaçada pela variação natural nas taxas reprodutivas. Precisa cair para zero para que essa população de botos consiga sobreviver dentro dos próximos cem anos, o que acende um sinal de alerta para os especialistas.

Criação de áreas protegidas ao longo da costa marítima é uma importante medida de conservação para os botos

Para garantir a sobrevivência do Boto-de-Lahille, é fundamental implementar medidas de conservação. A criação de áreas protegidas, o monitoramento das populações e a conscientização do público são algumas das ações necessárias para garantir a preservação desta espécie. Nesse sentido em 2019, através da Portaria nº 375, foi aprovado o Plano de Ação Nacional para Conservação de Cetáceos Marinhos Ameaçados de Extinção (PAN Cetáceos Marinhos). O boto-de-Lahille é uma das sete espécies de cetáceos ameaçadas incluídas no PAN e, portanto, deveria ser contemplada com estratégias de gestão e manejo que contribuam para melhorar o seu status de ameaça e, consequentemente, garantir a sua sobrevivência ao longo do tempo.

A criação de áreas protegidas ao longo das áreas costeiras e estuarinas pode ajudar a preservar o habitat e a biodiversidade local. O monitoramento das populações de boto-de-Lahille também é essencial para entender as tendências populacionais e identificar possíveis ameaças.

Participação das comunidades locais é fundamental para ampliar o apoio às medidas de conservação dos botos

A conscientização do público sobre a importância do boto-de-Lahille e as ameaças que enfrentam é crucial para garantir o apoio às medidas de conservação. Campanhas educacionais, programas de ecoturismo e a colaboração entre governos, organizações não governamentais e comunidades locais são algumas das maneiras de promover a conscientização e o engajamento na proteção desta espécie.

O boto-de-Lahille é um mamífero marinho importante para os ecossistemas costeiros e estuarinos do sul do Brasil, Argentina e Uruguai. A preservação desta espécie é fundamental não apenas para a saúde dos ecossistemas marinhos, mas também para o bem-estar das comunidades locais que dependem dos recursos marinhos e do turismo

Fontes: UFRGS, FURG, Estadão, Fauna News (1), Fauna News (2), G1Globo, GZH, Pesquisa Fapesp

Fotos: Boto-de-Lahille_by Ignacio-Moreno e Botos-de-Lahille_Projeto-Lagoa-dos-Patos