História de sucesso na conservação do gorila-das-montanhas integrando ciência, turismo e apoio das comunidades

 

O gorila-das-montanhas (Gorilla beringei beringei) é uma das duas subespécies do gorila-oriental e figura entre os maiores primatas vivos. Após um século de guerras regionais, perda de habitat e doenças, essa subespécie tornou-se um caso raro de recuperação: seu status foi reclassificado de Criticamente Em Perigo (CR) para Em Perigo (EN), e as contagens recentes indicam pouco mais de mil indivíduos — com estimativas frequentemente citando 1.063 — distribuídos em duas subpopulações. Essa trajetória positiva não é obra do acaso: resulta de um arranjo consistente entre áreas protegidas, órgãos governamentais, ONGs e comunidades locais, em que a pesquisa de longo prazo e o turismo de observação, com protocolos rigorosos, financiam parte significativa da proteção.

Distribuição geográfica e habitat

Os gorilas-das-montanhas são endêmicos de uma pequena faixa da África Central. Mais da metade vive no Maciço de Virunga — que integra o Parque Nacional dos Vulcões (Ruanda), o Parque Nacional de Mgahinga (Uganda) e o Parque Nacional de Virunga (RDC) — e o restante no Parque Nacional Impenetrável de Bwindi (Uganda) e sua área contígua, Sarambwe, na RDC. Em conjunto, essas áreas somam menos de 780 km² de florestas montanas entre 2.400 e 4.500 m de altitude, com vegetação densa de bambus, arbustos lenhosos e trechos subalpinos. A fragmentação entre Virunga e Bwindi-Sarambwe é marcada por zonas agrícolas, o que demanda gestão transfronteiriça para manter conectividade e reduzir conflitos.

Morfologia e adaptações

Comparados a outros gorilas, os indivíduos dessa subespécie exibem pelos mais longos e espessos, de coloração negra que pode tender ao azul-escuro, uma adaptação às temperaturas por vezes abaixo de 0 °C. O dimorfismo sexual é marcado: machos adultos chegam a quase o dobro do peso das fêmeas e desenvolvem os dorsos prateados nas costas. Cristas cranianas proeminentes e caninos alongados compõem um conjunto de traços usados sobretudo em exibições de dissuasão.

Dieta e papel ecológico

A escassez relativa de frutas nas altitudes elevadas faz com que a dieta seja dominada por folhas, caules, brotos de bambu, cascas e raízes; insetos e até solo podem complementar micronutrientes. Um adulto pode consumir até 18 kg de material vegetal por dia e obtem a maior parte da água diretamente dos alimentos. O alto teor de taninos — os mesmos compostos que escurecem chá e café — explica o escurecimento gradual dos dentes. Como grandes jardineiros das florestas, regulam o sub-bosque, podam bambuzais e dispersam sementes, sustentando uma comunidade vegetal diversa.

Organização social, comunicação e vida diária

Os gorilas-das-montanhas vivem em bandos, em média com cerca de 10 indivíduos, mas podendo superar 30. O grupo é liderado por um dorso-prateado dominante, responsável por decisões de deslocamento, alimentação e proteção. Diferentemente do padrão mais comum de um único macho reprodutor, cerca de 40% dos grupos podem ter múltiplos dorsos-prateados subordinados, o que influencia a dinâmica de hierarquias e reprodução. A comunicação combina um repertório amplo de vocalizações (grunhidos, rugidos, chamados de alarme, “cantos” suaves durante a alimentação) com exibições visuais e o clássico tamborilar no peito — audível a longas distâncias em vegetação densa. O dia-a-dia alterna forrageio no começo da manhã e fim da tarde, repouso ao meio-dia e construção de ninhos noturnos.

Predadores e convivências

O leopardo é o principal predador natural, com maior risco para filhotes. Os gorilas-das-montanhas compartilham seu habitat com outros primatas, incluindo macacos-dourados ( Cercopithecus mitis kandti ), guerezas ou macacos-colobus-pretos-e-brancos ( Colobus guereza ) e chimpanzés-orientais ( Pan troglodytes schweinfurthii ). Essa coexistência com outros primatas é em geral pacífica, com baixa sobreposição alimentar; conflitos entre espécies tendem a refletir competição por espaço, não por comida.

Sucesso da conservação: resultados e razões

A trajetória do gorila-das-montanhas é uma das histórias mais importantes de recuperação entre grandes primatas. Após o colapso populacional do final do século XX, estimativas de 1998 apontavam cerca de 620 indivíduos; em pouco mais de duas décadas, a soma ultrapassou a marca de mil, com números frequentemente citando 1.004 (2018) e 1.063 em levantamentos mais recentes. O Maciço de Virunga, que reunia cerca de 480 gorilas em 2010, alcançou 604 indivíduos em 2016, enquanto o ecossistema Bwindi-Sarambwe registrou 459 em 2018, distribuídos em 50 grupos e 13 solitários. Esses resultados embasaram a reclassificação do status de ameaça, de Criticamente Em Perigo (CR) para Em Perigo (EN), e foram alcançados apesar de um contexto regional marcado por instabilidade política. As razões desse avanço são claras: monitoramento diário de grupos habituados, resposta veterinária rápida a ferimentos e infecções, remoção sistemática de armadilhas, presença constante de guardas e pesquisadores no território e um modelo de ecoturismo regulado que converte observação de gorilas em receitas estáveis para reinvestimento. O turismo, por sua vez, só se sustenta onde há confiança social; por isso, o eixo comunitário com repartição de receitas, compensações por danos, zonas tampão com culturas pouco atrativas a gorilas e empreendimentos de propriedade comunitária transformou antigos antagonismos em cooperação duradoura. Iniciativas como HUGO, que responde de forma não letal quando grupos saem do parque, e redes de “animadores de conservação” que fazem educação ambiental e mediação de conflitos, reduziram tensões nas bordas, enquanto investimentos como a aquisição e doação de terras contíguas para ampliar habitat diminuem estrangulamentos espaciais. Em resumo, a recuperação não é fruto de uma medida isolada, mas da conexão entre ciência de longo prazo, governança transfronteiriça, incentivos econômicos locais e participação social em um arranjo que tornou o gorila-das-montanhas o único grande primata com população em crescimento contínuo nas últimas décadas.

Estado de conservação e principais ameaças

O gorila-das-montanhas é classificado como Em Perigo (EN) e permanece dependente de ações constantes de manejo e proteção de habitat. Embora as populações tenham se recuperado nas últimas décadas, a pressão sobre seu território continua elevada e multifacetada. A degradação florestal persiste em zonas de borda devido à expansão agrícola, extração ilegal de madeira e produção de carvão vegetal; em certos momentos de instabilidade política, até mesmo áreas oficialmente protegidas tornam-se vulneráveis à ocupação e ao desmatamento. A proximidade crescente entre assentamentos humanos e limites de parque intensifica conflitos, inclusive por meio de armadilhas destinadas a outras espécies que ferem gorilas, sobretudo filhotes, de modo acidental. A ameaça sanitária é igualmente relevante: por serem geneticamente próximos de humanos, os gorilas são suscetíveis a infecções respiratórias comuns em pessoas, e o turismo, ainda que vital para o financiamento da conservação, exige protocolos rigorosos para evitar a transmissão de doenças. Nesse contexto, patrulhas anti-caça, remoção sistemática de armadilhas, vigilância veterinária e educação ambiental tornaram-se componentes cotidianos da gestão, reduzindo riscos imediatos sem perder de vista a causa estrutural: a disputa por terra, energia e renda em uma região onde o bem-estar de milhares de famílias depende do uso direto de recursos naturais.

Conservação baseada em ciência e colaboração

A recuperação do gorila-das-montanhas foi construída sobre um arranjo institucional que integra áreas protegidas, órgãos governamentais, ONGs e comunidades, funcionando de modo transfronteiriço e baseado em ciência. Os parques nacionais dos Vulcões (Ruanda), Mgahinga e Bwindi (Uganda) e Virunga (RDC) compõem o núcleo territorial de proteção, articulado pela Colaboração Transfronteiriça da Grande Virunga (GVTC), que harmoniza censos, monitoramento, aplicação da lei e diretrizes de turismo. Organizações como o Dian Fossey Gorilla Fund por meio do Centro de Pesquisa Karisoke e de séries demográficas que somam mais de cinco décadas, o International Gorilla Conservation Programme (IGCP), que congrega WWF, Conservation International,  Fauna & Flora, e a African Wildlife Foundation, com iniciativas de expansão de habitat e empreendimentos de base comunitária, sustentam um ciclo contínuo de dados, protocolos e avaliação adaptativa. Tecnologias de campo como armadilhas fotográficas, sensores  e sistemas de informação usados por guardas, agilizam a coleta e o compartilhamento de evidências para decisões em tempo quase real. Ao mesmo tempo, a política de repartição de benefícios, como a regra de destinar parte das receitas turísticas diretamente às comunidades vizinhas, converte a conservação em bens públicos tangíveis — escolas, saúde, infraestrutura e cadeias de valor locais —, reforçando legitimidade e adesão social. Assim, ciência, governança e incentivos econômicos alinham-se para tornar a proteção do gorila não apenas uma agenda ambiental, mas um projeto de desenvolvimento territorial.

Turismo de gorilas como motor econômico com salvaguardas

O turismo de observação é um vetor central de financiamento: licenças são limitadas por grupo, duração e dia, com valores definidos por país; a alta demanda garante receitas significativas, reinvestidas em conservação e em obras públicas locais. A estratégia dá resultados: em Uganda, parques de gorilas geram mais receitas do que os demais parques combinados; em Ruanda, o ecoturismo tornou-se alavanca de desenvolvimento. Empreendimentos de propriedade comunitária, como o Sabyinyo Silverback Lodge (Ruanda) e o Clouds Mountain Gorilla Lodge (Uganda), exemplificam como parte do excedente econômico permanece no território, gerando empregos e reforçando o apoio social aos parques.

O turismo, todavia, traz riscos: aumento de estresse, alteração comportamental e, sobretudo, transmissão de doenças. Para mitigar, aplicam-se diretrizes de boas práticas para grandes primatas (limites de pessoas e tempo de contato, distâncias mínimas, máscaras, triagem de sintomas, proibição de toque e regras rígidas de higiene). A evidência indica que grupos habituados, embora mais detectáveis, sobrevivem melhor quando beneficiados por monitoramento constante e intervenção veterinária rápida.

Comunidades e educação ambiental

O êxito recente tem um fio condutor: engajamento comunitário. Quando a conservação se baseava em exclusão, conflitos eram frequentes e gorilas eram perseguidos ao invadirem roças. O arranjo atual combina partilha de receitas, alternativas de renda (apicultura, artesanato, horticultura, cultivo de chá e café), zonas tampão com culturas menos atrativas a gorilas (chá, capim-limão, artemísia) e participação social na resposta a conflitos. Iniciativas como a HUGO (Human-Gorilla Conflict Resolution Initiative), em Bwindi, mobilizam moradores para monitorar e conduzir grupos de volta ao parque quando saem dos limites; os ANICO (Animadores de Conservação), em Ruanda e RDC, difundem educação ambiental, apoiam manejo de animais problema e pleiteiam compensações governamentais por danos. O resultado é uma mudança de atitude: de “inimigos dos gorilas” a parceiros de sua proteção.

Desafios emergentes

O êxito recente traz outros desafios. Em um mosaico de florestas montanas limitado a menos de 800 km², o aumento da densidade de grupos altera a dinâmica social: crescem as interações intergrupais, intensificam-se as disputas entre machos e a mobilidade de fêmeas, e, em certos períodos, observam-se maiores taxas de mortalidade infantil e intervalos reprodutivos mais longos. Essas pressões decorrentes de espaço restrito, somam-se a ameaças externas como conflitos armados, mercado ilegal de carvão, avanço agrícola e risco epidemiológico, exigindo uma gestão cada vez mais aprimorada. As respostas passam por consolidar e expandir a conectividade entre blocos florestais, fortalecer protocolos sanitários no turismo e na pesquisa, manter a coordenação transfronteiriça e aprofundar alternativas econômicas que reduzam a dependência de atividades extrativas em zonas de parque.

O gorila-das-montanhas sobrevive e resiste em uma das regiões socioambientalmente mais complexas do planeta porque ciência, políticas públicas, ONGs e comunidades a estabelecerem formas de cooperação voltadas para a conservação do gorila. Áreas protegidas bem geridas, partilha de benefícios do turismo, educação ambiental, alternativas econômicas locais e monitoramento diário criaram um círculo virtuoso: quanto mais valor social e econômico se reconhece no gorila vivo e em sua floresta, mais robusta se torna a proteção. A permanência desse sucesso, contudo, depende de consolidar a paz, ampliar o habitat, manter o financiamento e respeitar limites biológicos e sanitários do turismo.

Fontes: WWF, Animal Diversity, New England Primate Conservancy, Dian Fossey Gorilla Fund (1), UNESCO, National Geographic, Dian Fossey Gorilla Fund (2), WWF.Ca, Uganda Wildlife Authority, International Gorilla Conservation Programme – IGCP, WWF-UK, African Wildlife Foundation, Discover Wildlife, Journal of Animal Conservation

Fotos: Gorila da Montanha_Dian Fossey Gorilla Fund; segunda foto:_by Skyler Bishop; terceira foto:_by Christophe Courteau; quarta foto:_Dian Fossey Gorilla Fund e útima foto: _WWF-UK