Entre as inúmeras espécies que habitam os ecossistemas tropicais brasileiros, uma pequena perereca tem despertado atenção mundial. Trata-se da Xenohyla truncata, conhecida como perereca-de-fruta, cuja dieta composta de frutos e néctar pode ter levado a um comportamento inédito, de ser um possível anfíbio polinizador. Pesquisas recentes indicam que, ao visitar flores em busca de alimento, essa espécie acaba ficando coberta de pólen, podendo transferi-lo entre plantas — um papel até então atribuído a insetos, aves e mamíferos. Embora a confirmação científica definitiva ainda dependa de estudos adicionais, o simples indício já representa um avanço notável na compreensão das relações ecológicas e abre novas perspectivas sobre o papel dos anfíbios nos ecossistemas tropicais.
Caracterização geral e habitat
A perereca-de-fruta,
também chamada de perereca-de-Izecksohn ou perereca-de-bromélia,
pertence à família Hylidae e é endêmica do Brasil. Sua distribuição é
restrita às planícies costeiras do estado do Rio de Janeiro, especialmente nas áreas
de restinga, ambientes frágeis e altamente ameaçados pela expansão urbana.
Essas pererecas passam a maior parte do tempo nas bromélias, que lhes oferecem
abrigo e microclima úmido, essenciais à sua sobrevivência. O ciclo reprodutivo
pode ocorrer tanto em poças temporárias quanto nas próprias bromélias que
acumulam água, o que demonstra grande plasticidade ecológica.
O traço mais surpreendente da
espécie é sua alimentação predominantemente frugívora, algo inédito
entre anfíbios. Essa dieta diferenciada e a interação com flores e frutos
tornaram a Xenohyla truncata um objeto de grande interesse para a
ciência.
Ecologia alimentar e comportamento
Durante
as noites quentes nas restingas fluminenses, as pererecas sobem nas árvores-do-leite
(Cordia taguahyensis), atraídas pelos frutos cremosos e pelas flores
ricas em néctar. Nesses momentos, é possível observar dezenas de indivíduos
disputando espaço nos galhos, mordiscando os frutos e sorvendo o néctar. Essa
cena, aparentemente simples, pode esconder um processo ecológico de grande
relevância: ao se deslocarem entre as flores, as pererecas acabam ficando
cobertas por grãos de pólen que aderem à pele úmida de seu dorso. Assim,
a Xenohyla truncata poderia estar participando involuntariamente da
polinização das plantas, transportando o pólen entre flores — uma função
jamais documentada de forma comprovada em outro anfíbio.
A descoberta e sua repercussão
científica
O potencial polinizador da Xenohyla
truncata foi descrito em 2023 em artigo publicado na revista Food Webs,
resultado de observações de campo em Armação dos Búzios (RJ). Pesquisadores
registraram o comportamento alimentar da espécie e constataram a presença de
pólen aderido à pele, indicando uma interação ecológica inédita.
Tradicionalmente, a polinização é associada a abelhas, borboletas, aves e
morcegos, mas estudos recentes vêm demonstrando que répteis e pequenos
mamíferos também podem exercer esse papel. A inclusão de um anfíbio nessa lista
amplia significativamente o entendimento sobre as redes de polinização e
as adaptações evolutivas em ambientes tropicais.
A descoberta ganhou grande
repercussão em publicações internacionais, destacando o Brasil como palco de
uma possível revolução no campo da ecologia comportamental. Ainda que sejam
necessárias novas pesquisas para comprovar a transferência efetiva de pólen, o
caso já é considerado um marco na biologia dos anfíbios.
Função ecológica e ameaças
A combinação de frugivoria e
polinização potencial faz da Xenohyla truncata um elo essencial nas cadeias
ecológicas das restingas, contribuindo tanto para a dispersão de sementes
quanto, possivelmente, para a fertilização cruzada de plantas nativas.
Entretanto, sua sobrevivência está seriamente ameaçada. A União Internacional
para a Conservação da Natureza (IUCN) classifica a espécie como Vulnerável (VU)
devido à sua distribuição restrita — menos de 20 mil km² — e à redução
contínua de seu habitat. O avanço da urbanização, o desmatamento, os
incêndios e a coleta ilegal de bromélias têm reduzido drasticamente os locais
onde a espécie pode se reproduzir e se alimentar.
Além disso, os efeitos das
mudanças climáticas, como a alteração dos regimes de chuva e a elevação da
temperatura média, interferem diretamente na disponibilidade de água nas
bromélias e nas condições de microclima das restingas, afetando a reprodução e
a sobrevivência das populações.
Pesquisas e ações de conservação
A conservação da Xenohyla
truncata mobiliza uma rede crescente de pesquisadores, ONGs e órgãos
governamentais. Estudos realizados por universidades brasileiras — como a UFRJ
e a UFMS — têm fornecido dados valiosos sobre o comportamento e a ecologia da
espécie.
O Instituto Estadual do Ambiente
(INEA), em conjunto com a Secretaria de Meio Ambiente de Maricá,
mantém ações de monitoramento na Área de Proteção Ambiental (APA) Maricá,
uma das principais regiões onde a perereca ainda é observada. Ali, projetos de educação
ambiental e proteção de bromélias vêm sendo implementados com o
apoio de comunidades locais.
ONGs e grupos independentes de
herpetologia, como o Herpeto Capixaba, têm se destacado na divulgação
científica e sensibilização pública, usando redes sociais e campanhas
ambientais para alertar sobre o valor ecológico e simbólico dessa espécie
única. Essas iniciativas representam passos importantes para garantir que a Xenohyla
truncata continue desempenhando seu papel nos ecossistemas.
Perspectivas de conservação
Apesar do reconhecimento crescente,
os desafios permanecem. A conservação efetiva da Xenohyla truncata exige
proteção integral dos remanescentes de restinga, além de políticas
públicas que integrem ciência, educação e fiscalização ambiental. A restauração
de habitats e o incentivo à pesquisa científica são medidas urgentes para
assegurar a sobrevivência da espécie.
No plano social, a valorização
das espécies nativas e o envolvimento comunitário são essenciais. Ao
compreender o papel ecológico dessa perereca, a população local torna-se
parceira ativa na preservação de seu ambiente natural, transformando a
curiosidade científica em compromisso coletivo com a biodiversidade.
A
perereca-de-fruta, ao que tudo indica, é muito mais do que um anfíbio curioso
das restingas fluminenses. Ela representa uma fronteira inédita do conhecimento
científico, desafiando os limites do que se entende por polinização animal. Ao
unir comportamento frugívoro, habitat especializado e possível função
polinizadora, a Xenohyla truncata exemplifica a complexidade das
interações ecológicas que sustentam a vida nos ecossistemas tropicais.
Fontes: Food Webs, Herpeto
Capixaba, The
Times, Revista Fapesp, Live
Science, Strait
Times, Backyard
Boss, FreeJupiter,
Reptiles Magazine, Rota Verde, GreenMe,
UFMS
Fotos: Perereca Xenohyla truncata_by Pedro Peloso, a segunda, terceira e quarta foto são de Carlos Henrique de Oliveira Nogueira