O bicudo (Sporophila maximiliani) é uma ave passeriforme
nativa da América do Sul que, apesar de sua ampla distribuição histórica,
encontra-se hoje em risco crítico de extinção. Popularmente conhecido como bicudo-preto
ou bicudo-verdadeiro, esse pássaro se destaca por seu canto melodioso,
que o tornou alvo de intensa captura ilegal. Associado a ambientes úmidos e
vegetação densa, o bicudo teve seu habitat severamente reduzido por práticas
humanas como a expansão agropecuária, uso de agrotóxicos e queimadas. Além
disso, a valorização comercial de seu canto impulsionou o tráfico de animais
silvestres, contribuindo ainda mais para o declínio de suas populações.
A preocupação com a conservação da espécie levou à mobilização de
diferentes instituições, incluindo universidades, órgãos ambientais e
organizações não governamentais, que têm empreendido esforços significativos
para reverter esse quadro. Projetos de monitoramento, reprodução em
cativeiro, estudos ecológicos e reintrodução em áreas protegidas
estão em curso e representam uma importante frente de resistência à perda desse
pássaro.
Características físicas e comportamento
O bicudo mede entre 14,5 e 16,5 centímetros de comprimento e pesa
cerca de 22 gramas. É uma espécie que apresenta dimorfismo sexual evidente: os
machos adultos possuem plumagem preta com detalhes brancos nas asas e bico de
cor clara, enquanto as fêmeas e os filhotes têm coloração parda, com tons
castanhos mais discretos. Os machos jovens começam a adquirir a plumagem adulta
por volta de um ano de idade.
Seu canto é uma das características mais notáveis e apreciadas, sendo
composto por uma sequência complexa de notas trêmulas e melodiosas que lembram
o som de uma flauta. Territorialista por natureza, o bicudo vive
geralmente aos pares e defende seu território com cerca de cem metros de raio
por meio de desafios vocais. Apesar de raramente recorrer à agressão física,
assume postura ereta e destacada ao cantar, demonstrando vigor e disposição
para disputar a atenção de fêmeas.
Habitat e distribuição
O bicudo habita áreas alagadas, brejos, veredas, beiras de rios e
lagos, preferindo ambientes com vegetação densa e acesso constante à água. Sua
dieta é granívora, baseada em sementes de gramíneas como capim-navalha (Hypolytrum
pungens), navalha-de-macaco (Hypolytrum schraderianum) e tiririca (Cyperus
rotundus), embora também consuma arroz, o que o torna vulnerável à
contaminação por pesticidas em áreas agrícolas. A espécie se adapta a regiões
de clima quente, com temperaturas superiores a 25 °C.
Atualmente, o bicudo é encontrado em duas populações
geograficamente separadas na América do Sul, caracterizando a existência de
duas subespécies. A subespécie Sporophila maximiliani maximiliani
ocorria no centro e leste do Brasil, abrangendo estados como Minas Gerais,
Goiás, São Paulo e Bahia, mas hoje está criticamente ameaçada. Já a subespécie Sporophila
maximiliani magnirostris é encontrada na região norte do continente,
incluindo o Amapá, norte do Pará, Venezuela, Guiana e Guiana Francesa. Essa
subespécie apresenta bico aproximadamente 20% maior e asas e cauda ligeiramente
mais longas que a maximiliani.
No Brasil, a espécie está praticamente extinta em grande parte da
sua área original, com registros recentes limitados a pequenas populações no
estado de Minas Gerais. A transformação de seus habitats naturais, a
fragmentação ambiental e a pressão do tráfico contribuíram significativamente
para o desaparecimento da espécie em diversos biomas, como o Cerrado e a
Amazônia. Ambas as subespécies enfrentam ameaças semelhantes e compartilham o
mesmo risco elevado de extinção, o que reforça a necessidade de ações integradas
de conservação em diferentes regiões.
A ameaça da extinção
O bicudo sofreu forte pressão ao longo das últimas décadas,
principalmente por conta do tráfico de animais silvestres. Seu canto altamente
valorizado em torneios de canto levou à captura sistemática da espécie, que
praticamente desapareceu de seu ambiente natural. Associada à destruição e
alteração de habitats, essa pressão levou à classificação da espécie como “Criticamente
em Perigo” pelo IBAMA. A estimativa atual aponta para menos de 100
indivíduos em vida livre no Brasil.
A situação se agravou com a transformação de pastagens nativas em áreas
agrícolas, uso indiscriminado de agrotóxicos e incêndios intencionais
para manejo de terras, afetando diretamente os habitats da ave. Apesar de ainda
existirem milhares de indivíduos em cativeiro, a escassez de bicudos em
liberdade e a dificuldade em compreender plenamente sua ecologia tornaram sua
conservação um grande desafio.
Ações de conservação: o Projeto Bicudos
Em resposta à situação crítica do bicudo, o Projeto
Bicudos foi criado em
2016 pelo Waita – Instituto de Pesquisa
e Conservação, com apoio
da Fundação Grupo
Boticário, e em parceria com
o Instituto Estadual de Florestas
de Minas Gerais (IEF), o IBAMA, universidades como UFV, UFOP, UFMG e UFG, e mais recentemente com apoio da Fundação Renova.
O projeto iniciou-se com estudos genéticos e sanitários de populações em
cativeiro, buscando avaliar seu potencial para reintrodução. Paralelamente,
foram realizadas buscas por indivíduos selvagens e levantamentos de áreas
adequadas para soltura. Os esforços resultaram na descoberta, em 2020, de uma
minúscula população composta por dois machos e uma fêmea no entorno do Parque Estadual
do Rio Doce (PERD), em Minas
Gerais. Em 2021, uma segunda população foi localizada ao sul do mesmo parque.
Desde então, as equipes do Waita, com apoio técnico das
universidades e órgãos ambientais, vêm monitorando essas populações, coletando
dados sobre comportamento, ecologia, vocalização, biometria e genética. As
gravações de cantos dos indivíduos selvagens são fundamentais para treinamento
bioacústico de bicudos em cativeiro, cujos cantos já foram alterados
artificialmente.
Educação ambiental, desafios e perspectivas
Além da conservação direta da espécie, o Projeto Bicudos tem
investido em ações de educação ambiental junto às comunidades do entorno das
áreas de ocorrência, com foco na valorização do meio ambiente e no combate ao
tráfico de fauna. Campanhas educativas em escolas e parcerias com proprietários
rurais e empresas têm sido fundamentais para ampliar a rede de apoio à proteção
da espécie.
Os desafios persistem: a vulnerabilidade do habitat, a pressão do
tráfico e a escassez de recursos dificultam as ações de conservação. No
entanto, o aparecimento de um jovem bicudo nas populações monitoradas indica
possível reprodução, um sinal de esperança para o futuro da espécie.
O objetivo de longo prazo do projeto é garantir a reintrodução segura
e sustentável da espécie em áreas protegidas e adequadas, contribuindo não
apenas para a conservação do bicudo, mas também para a proteção dos
ecossistemas associados, fortalecendo o papel da sociedade civil, do terceiro
setor e dos órgãos governamentais na defesa da biodiversidade brasileira.
A trajetória do bicudo retrata de forma emblemática os impactos da ação
humana sobre a fauna brasileira e os desafios enfrentados na conservação de
espécies ameaçadas. O esforço conjunto entre instituições públicas, ONGs e a
comunidade científica mostra que, mesmo diante de um cenário crítico, é
possível construir alternativas para a proteção da biodiversidade. O canto do
bicudo, quase silenciado pela ganância e negligência, pode ainda ecoar nas
matas se ações como as do Projeto Bicudos continuarem sendo valorizadas
e apoiadas.
Fontes: WikiAves, GreenBond, BioDiversity4All, G1Globo, Universidade Federal de Viçosa (UFV), Biofaces, Waita, Birds of the World, Animalia.bio
Fotos: Bicudo_macho_by Fabio Olmos; segunda foto: bicudo_fêmea_by Nina Wenóli e terceira foto: bicudo_macho_by Ruben D. Layme