A sururina-da-serra (Tinamus resonans) é uma nova espécie de tinamídeo recentemente identificada na Serra do Divisor, no extremo oeste do Acre, ampliando o conhecimento sobre a avifauna montanhosa da região. Trata-se de uma ave terrestre, cuja distribuição é extremamente restrita a altitudes intermediárias desse conjunto montanhoso isolado na fronteira entre Brasil e Peru. Sua descoberta resulta de anos de pesquisa em uma área pouco estudada, reforçando a importância científica e conservacionista dos ecossistemas elevados amazônicos.
Uma espécie recém-revelada
A sururina-da-serra é uma das
descobertas mais marcantes da ornitologia brasileira recente. Identificada na
Serra do Divisor, no extremo oeste do Acre, essa ave surpreende pela combinação
de singularidades biológicas, comportamentais e ecológicas que a diferenciam
profundamente de seus parentes próximos. Pequena, terrestre e visualmente
discreta à primeira vista, a espécie reúne características únicas: plumagem
canela-ruiva, uma faixa escura marcada ao redor dos olhos, vocalizações de
acústica incomum e, sobretudo, um comportamento notavelmente dócil diante da
presença humana. Sua descrição formal, resultado de anos de pesquisa, trouxe à
luz uma população estimada em cerca de 2.000 indivíduos vivendo em uma faixa
altitudinal extremamente limitada. A pesquisa foi conduzida por especialistas do MHNCE/Universidade Estadual do Ceará (UECE),
do Museu Nacional/Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar) e da Secretaria
de Estado do Meio Ambiente do Acre.
Características distintivas e comportamento inesperado
Entre as sururinas da família
Tinamidae, tradicionalmente tímidas e furtivas, a sururina-da-serra
destaca-se por contrariar esse padrão. De porte semelhante ao de uma galinha,
apresenta dimensões corporais compatíveis com outros tinamídeos de médio
tamanho. Uma das marcas mais impressionantes é sua ausência de medo do
ser humano. Em expedições realizadas entre 2024 e 2025, indivíduos foram
observados caminhando de forma tranquila pelo sub-bosque e, por diversas vezes,
aproximando-se dos pesquisadores sem qualquer sinal de alarme. Tal
comportamento, raro entre aves frequentemente caçadas por comunidades
tradicionais, aumenta de forma significativa sua vulnerabilidade, inclusive
diante de riscos como a caça ilegal e a biopirataria. Sua aparência também foge
ao padrão das espécies aparentadas: o corpo com tonalidade canela-ruiva e a
faixa escura sobre os olhos conferem à ave um aspecto inusitado, que inspirou
inclusive o nome comum em inglês, associado à “máscara” facial.
O canto que revelou uma espécie
A vocalização da sururina-da-serra
é um de seus traços mais extraordinários. O canto foi registrado pela primeira
vez em outubro de 2021, antes mesmo de qualquer encontro visual, e apresentou
um padrão acústico inédito entre os tinamídeos. Sua voz cresce gradualmente em
frequência, lembrando a progressão de notas de um piano, espalhando-se no
interior da floresta de modo a confundir o ouvinte quanto à distância e direção
da fonte do som. Esse eco característico motivou o epíteto específico resonans,
em referência direta à ressonância e à propagação incomum das vocalizações. A
descoberta da ave, três anos após o primeiro registro auditivo, reforça a
importância da bioacústica para a identificação de espécies raras e de hábitos
discretos.
Habitat excepcional e
distribuição extremamente restrita
A sururina-da-serra habita
exclusivamente altitudes entre 300 e 435 metros no topo da Serra do Divisor,
uma região isolada que constitui a extremidade oriental dos Andes. Essa
formação montanhosa funciona como uma verdadeira “ilha celeste” ecológica,
circundada pelas planícies amazônicas e marcada por micro-habitats únicos.
Entre os seis tinamús florestais pequenos conhecidos na região, apenas Tinamus
resonans está associado às áreas mais elevadas. Sua distribuição é,
portanto, uma das mais restritas entre as aves amazônicas recentes,
limitando-se integralmente a uma estreita faixa altitudinal que determina suas
condições de sobrevivência. A área, embora pouco habitada e ainda
majoritariamente preservada, concentra processos ecológicos delicados,
altamente sensíveis a pressões externas.
A ameaça silenciosa das mudanças
climáticas
O fato de a espécie ocupar
literalmente o “último andar” da Serra do Divisor torna a sururina-da-serra
extremamente vulnerável às alterações climáticas. Em ecossistemas
montanos, muitas espécies deslocam-se para altitudes superiores conforme as
temperaturas aumentam; porém, quando já vivem no topo, não há espaço para novos
movimentos. Esse fenômeno, conhecido como “escada rolante para a extinção”,
descreve exatamente o risco enfrentado pela espécie. Mudanças na temperatura,
no regime de chuvas ou na estrutura da vegetação podem comprometer de forma
irreversível seu habitat. Estudos indicam que áreas altas de florestas
tropicais são particularmente sensíveis ao aquecimento global, e
cenários de médio prazo sugerem risco real de declínio populacional caso o
ambiente se altere.
Riscos adicionais: fogo, exploração e pressões humanas
Além do clima, a sururina-da-serra
enfrenta ameaças severas relacionadas ao uso da terra. O solo da região,
formado por antigos depósitos de arenito, é altamente suscetível ao fogo. Um
único incêndio pode eliminar séculos de formação florestal e impactar
drasticamente a população da espécie. Projetos de infraestrutura, como a
proposta de rodovia ligando Brasil e Peru e planos de uma ferrovia
transcontinental, representam potenciais vetores de degradação e aumento da
circulação humana. Também há discussões sobre flexibilizar a proteção do Parque
Nacional da Serra do Divisor, o que poderia abrir caminho para mineração e
exploração econômica. A combinação desses fatores coloca a espécie em situação
crítica, considerando seu comportamento dócil, a proximidade potencial de
caçadores e a fragilidade ecológica do habitat.
Reconhecimento, conservação e
urgência
A equipe responsável pela descrição
trabalha para incluir a sururina-da-serra em listas oficiais de fauna
ameaçada, etapa essencial para viabilizar ações de proteção específicas. A
história do dodô, frequentemente evocada pelos pesquisadores, funciona como
alerta emblemático: uma espécie dócil, restrita a um ambiente isolado e
sem predadores naturais, pode desaparecer rapidamente diante de pressões
humanas. A conservação da sururina demandará engajamento do poder público,
fortalecimento das políticas de proteção da Serra do Divisor e participação das
comunidades locais para garantir que uma espécie recém-descoberta
não caminhe para um destino semelhante ao de aves que desapareceram por falta
de ação.
Fontes: Zootaxa, Exame, G1 Globo, The New York Times
Fotos: Todas as fotos são de Luis Morais


