Ameaças e conservação da maria-catarinense nas florestas litorâneas do sul do Brasil


 A maria-catarinense (Hemitriccus kaempferi) é uma das aves mais enigmáticas e restritas da Mata Atlântica de baixada, ocorrendo exclusivamente no litoral sul do Paraná e centro-norte de Santa Catarina. Com cerca de 10 centímetros de comprimento e plumagem esverdeada que se confunde com a vegetação, a espécie é discreta e difícil de ser observada, o que contribui para a escassez de informações sobre sua ecologia. Endêmica do Brasil e classificada como vulnerável (VU) pela IUCN e pela legislação nacional, a maria-catarinense enfrenta graves ameaças decorrentes da perda e fragmentação do habitat, sendo considerada um dos passeriformes mais raros do país. Em Itapoá (SC), tornou-se um  símbolo local de biodiversidade após ser escolhida oficialmente como Ave Símbolo do município em 2009, reforçando sua importância regional e o potencial de mobilização comunitária para sua proteção.

Descrição e características gerais

A espécie apresenta um aspecto arredondado devido à densa plumagem, com dorso verde-oliva brilhante, asas amarronzadas com barras claras e face marrom mais acentuada na garganta e no peito. A barriga é bege-amarelada, e o conjunto cromático favorece sua camuflagem entre as folhas das árvores. Seus hábitos discretos e movimentos rápidos tornam o registro visual um desafio, ao mesmo tempo em que revelam uma ave adaptada à exploração de micro-habitats densamente vegetados. A alimentação é composta principalmente por invertebrados, incluindo besouros, borboletas, formigas e outros pequenos artrópodes capturados em voos curtos e precisos ou retirados de folhagens. A espécie não costuma participar de bandos mistos e exibe baixa capacidade de dispersão, característica que acentua o isolamento entre seus fragmentos populacionais.

Habitat e distribuição geográfica

A maria-catarinense habita florestas ombrófilas densas de baixada, especialmente áreas bem sombreadas, próximas a cursos d’água e com dossel contínuo. Embora possa utilizar matas secundárias bem estruturadas, depende fortemente de remanescentes florestais preservados. Sua distribuição é extremamente restrita e fragmentada, estendendo-se do sudeste do Paraná, especialmente na região da baía de Guaratuba, até o litoral centro-norte de Santa Catarina. Itapoá, São Francisco do Sul, Barra Velha, Blumenau, Piçarras e Ilhota estão entre os municípios onde a espécie foi registrada. Apesar de amplamente procurada por pesquisadores e observadores de aves, ainda não é registrada em cerca de 80% da área potencialmente favorável, evidenciando sua raridade e exigência ecológica. Nas últimas décadas, levantamentos ampliaram o conhecimento sobre sua distribuição, mas também confirmaram que os remanescentes de floresta que abrigam a espécie estão reduzidos a pequenos fragmentos isolados, frequentemente cercados por áreas urbanas, agrícolas ou por empreendimentos imobiliários.


Ecologia, comportamento e reprodução

As informações ecológicas sobre Hemitriccus kaempferi têm avançado lentamente devido à dificuldade de observação e ao tamanho reduzido de suas populações. Estudos recentes demonstram que indivíduos ocupam áreas de vida pequenas, refletindo comportamento territorial de machos e maior movimentação das fêmeas, que realizam sozinhas a construção do ninho, a incubação e o cuidado parental. Os ninhos apresentam formato característico de bolsa fechada, fixados lateralmente em ramos, como descrito para o gênero. Em sua dieta, predominam insetos encontrados entre folhas e galhos ou capturados em curtos voos realizados no interior da vegetação. Embora sete estratégias de forrageio tenham sido registradas, uma delas — baseada em ataques rápidos direcionados para cima — parece predominar. A espécie é residente, não realizando migrações, o que contribui para seu alto grau de fidelidade às áreas de baixada e potencial vulnerabilidade a alterações rápidas no ambiente.

Ameaças e fatores de declínio

A principal ameaça à maria-catarinense é a degradação das florestas de planície litorânea, um dos ambientes mais pressionados do bioma Mata Atlântica. Historicamente, menos de 20% da vegetação original permanece na região onde a espécie ocorre, e grande parte dos remanescentes está altamente fragmentada ou degradada. A expansão urbana e imobiliária, particularmente intensa em municípios como Itapoá e São Francisco do Sul, tem reduzido rapidamente a cobertura florestal. A agricultura, com destaque para os cultivos de banana e arroz, se soma à silvicultura e à industrialização como vetores contínuos de perda de habitat. Obras de infraestrutura, como a abertura de estradas e loteamentos, promovem ainda mais fragmentação, enquanto a elevação do nível do mar representa uma ameaça de longo prazo às florestas de baixada. Como consequência, as populações encontram-se distribuídas em fragmentos isolados, sem fluxo genético entre si, e estima-se que o número total de indivíduos maduros seja inferior a 10 mil.

Áreas protegidas e iniciativas de conservação

Apesar das pressões, a maria-catarinense conta com a proteção de algumas unidades de conservação que desempenham papel essencial para sua sobrevivência. No Paraná, a Área de Proteção Ambiental de Guaratuba destaca-se por abrigar a maior população conhecida da espécie, oferecendo condições adequadas de habitat em extensos remanescentes de florestas ombrófilas de baixada. A Estação Ecológica do Guaraguaçu e o Parque Nacional Saint-Hilaire/Lange complementam a proteção estadual e federal, contribuindo para a manutenção das áreas de ocorrência. Em Santa Catarina, fragmentos importantes situam-se no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, em áreas de proteção ambiental e em diversas Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Entre estas, a RPPN Volta Velha, localizada em Itapoá e gerida pela Associação de Defesa e Educação Ambiental (ADEA), ocupa posição de destaque por conservar extensos trechos de floresta de baixada e por atuar diretamente na proteção da espécie. A reserva, referência para pesquisadores e observadores de aves, tornou-se um dos principais locais para a observação da maria-catarinense, contribuindo para iniciativas de educação ambiental, manejo florestal e conscientização da comunidade.

Perspectivas e necessidades para a conservação

A conservação da maria-catarinense depende da ampliação e conexão de remanescentes florestais, da restauração de áreas degradadas e do fortalecimento das unidades de conservação existentes. É fundamental ampliar o monitoramento populacional e ecológico, especialmente em municípios onde a espécie ocorre de forma pontual. Programas de educação ambiental, como os promovidos pela ADEA em Itapoá, e o envolvimento de comunidades locais são essenciais para reduzir pressões e valorizar o patrimônio natural. Governos estaduais e federais podem atuar na criação de novos fragmentos protegidos, na proteção de áreas de baixada ainda intactas e na regulamentação do uso do solo em zonas sensíveis. Em longo prazo, garantir a integridade da Mata Atlântica de planície é a única forma de assegurar condições mínimas para a persistência de uma espécie cuja raridade e especificidade ecológica refletem a vulnerabilidade extrema dos ecossistemas costeiros.

Fontes: ADEA Brasil, WikiAves, UEL, NSC Total, Biodiversity4all, Aves Catarinenses,, O Eco, ,Birds of the World, ,DataZone, SALVE.ICMBio

Fotos: Maria-catarinense_by Aisse Gaertner, segunda e terceira fotos:_by Maria Isabel Weyermanns e quarta foto:_by Vinicius Rosa Ferreira